“Disputa do
Doutor Martinho Lutero sobre o Poder e Eficácia das Indulgências”, conhecida
como as 95 Teses, desafiou os ensinamentos da Igreja na natureza da penitência,
a autoridade do papa e da utilidade das indulgências. As 95 teses impulsionaram
o debate teológico que acabou por resultar no nascimento das tradições
luteranas, reformadas e anabatistas dentro do cristianismo. Este documento é
considerado por muitos como um marco da Reforma Protestante.
A ação de
Lutero foi em grande parte uma resposta à venda de indulgências por João
Tetzel, um frade dominicano, delegado do Arcebispo de Mainz e do papa. O
objetivo desta campanha de angariação de fundos foi o financiamento da Basílica
de S. Pedro em Roma.Mesmo apesar de o príncipe-eleitor (soberano) de Lutero,
Frederico, o Sábio, e o príncipe do território vizinho, o duque Georg da
Saxónia terem proibido a venda de indulgências em seu território, muitas
pessoas viajaram para as poder adquirir. Quando estas pessoas vieram
confessar-se, apresentaram a indulgência, afirmando que não mais necessitavam de
penitenciar pelos seus pecados, uma vez que o documento os perdoava de todos os
pecados.
Lutero
afixou as 95 teses na porta da igreja castelo em Wittenberg, Alemanha, a 31 de
Outubro de 1517. Alguns académicos questionaram a veracidade desta noção, notando
que não existem relatos de contemporâneos para ela. Outros afirmaram que não
houve necessidade de tais relatos pois esta acção era nos dias de Lutero o modo
comum de anunciar eventos nas universidades do tempo. As portas de igrejas
funcionavam na altura como os placares informativos funcionam hoje nos campus
universitários. Outros ainda sugeriram que as 95 teses podem muito bem ter sido
afixadas em Novembro de 1517. A maioria é unânime pelo menos em que Lutero terá
remetido estas teses por correio ao Arcebispo de Mainz, ao papa, a amigos e a
outras universidades nessa data, então historiadores como Gottfried Fitzer,
Erwin Iserloh e Klemens Houselmann, contestatam essa versão e disseram que não
houve de fato a fixação das 95 teses em Wittemberg. Do relato de Johannes
Schneider, um criado de Lutero, é que se extraiu a notícia da afixação das
teses. Escreveu apenas: “No ano de 1517, Lutero apresentou em Wittenberg, sobre
o EIba, segundo a antiga tradição da universidade, certas sentenças para
discussão, porém modestamente e sem haver desejado insultar ou ofender alguém”.
Então alguns concluem que não houve esse evento.
Segundo a
tradição luterana que celebra a persona Lutero (1483-1546), as “95 Teses” foram
afixadas na porta da Igreja do Castelo de Wittenberg em 31 de outubro de 1517.
Se este ato, recorrentemente celebrado como fundador da Reforma Luterana,
realmente aconteceu, não teria, em si mesmo, nada de excepcional: na verdade,
isso era um modo costumeiro de se anunciar uma “disputa” ou “justa teológica”
entre os doutos de Wittenberg. Portanto, não se tratava de uma ação que deveria
ter uma conotação individual, visto que as disputas eram debates que envolviam
professores e estudantes. Isso explica o fato de Lutero pedir para aqueles que
não pudessem se fazer presentes à disputa que, ao menos, enviassem as suas
opiniões por escrito para serem lidas. Afinal, segundo as regras da eloqüência,
as “teses” deveriam ser vistas como “pontos a serem debatidos” em uma plenária
de doutos.
Nesse
sentido, trata-se de um ato público envolvendo doutos e/ou seus estudantes,
como demonstra o fato de as teses terem sido escritas originalmente em latim e
não em alemão (língua familiar de Lutero). Observa-se também que o tom irônico
e uma certa preocupação com a métrica e a rima fazem parte do ritual de “belo
discurso” (arte da retórica) – conhecimento obrigatório nas universidades de
teologia e direito da época de Lutero. Portanto, ao lançar as suas “95 Teses”,
Lutero tornava públicas (mas não populares) as suas idéias, com a finalidade de
expor a doutos algumas questões que o incomodavam a respeito das “vendas de
perdão/indulgências”, cujas contradições práticas e doutrinais, somadas à
corrupção de determinados setores do clero, eram vistas por ele como uma ameaça
à credibilidade da fé cristã e da Igreja de Roma. Isso significa que, ao tornar
públicas as suas teses, Lutero esperava receber o apoio do papa, em vez de sua
censura. No entanto, depois de novas disputas teológicas, desta vez com agentes
enviados pelo Papa Leão X (1475-1521; pontificado: 1513-1521), foi redigida
contra Lutero uma carta de excomunhão datada em 21 de janeiro de 1521, que ele
receberia meses depois.
Entre 1517 e
1521, Lutero fora submetido a algumas disputas teológicas – e quase metade de
suas teses foi refutada pelos doutos do papa. Aos poucos, a situação fugiu dos
muros da universidade, e muitas idéias de Lutero foram convenientemente
distorcidas por membros da nobreza alemã, que utilizaram a “desculpa da fé”
para tomar bens e terras de famílias inimigas e da própria Igreja.
Imprevisivelmente, toda esta situação foi consolidando uma atmosfera de cisma
religioso na Europa que estava longe das intenções de Lutero. Portanto, deve-se
entender que a ação de Lutero misturou-se involuntariamente com interesses políticos
e com outras tendências do debate teológico e da cultura religiosa que
remontavam ao século XIII.
Ora, isso
nos possibilita entender por que Lutero manifestou-se tanto contra as revoltas
camponesas (marcadamente “anabatistas”) quanto contra os nobres que mesclavam
seus interesses mundanos com o debate teológico que ele suscitara. Além disso,
não se deve perder de vista que Lutero estava historicamente inscrito no
universo sociocultural do Antigo Regime e, portanto, era muito cioso das
hierarquias sociais. Por isso mesmo, criticava a nobreza e parte do clero por
não darem “bom exemplo” ao explorarem os camponeses com tributações
extraordinárias, pois isso apenas servia, segundo a sua opinião, para alimentar
novas circunstâncias de revoltas sociais. Assim, não é paradoxal que, em 1520,
ele tenha escrito o seu “Apelo à Nobreza Germânica” e, em 1525, no contexto das
guerras camponesas, tenha escrito “Sobre a Autoridade Secular”, admoestando
ambos os estamentos por criarem situações de instabilidade política e social.
Nestes dois
escritos, Lutero define claramente o caracter secular da autoridade política
como chave para se manterem equilibrados os direitos e responsabilidades que
justificavam as hierarquias sociais tradicionais. Portanto, frente a um mundo
que se apresentava instável e inseguro, Lutero apelava para dispositivos
tradicionais como meios de restauração da segurança no mundo, mas com uma
novidade doutrinal que jamais foi praticada plenamente em parte nenhuma da
Europa do Antigo Regime: uma década antes de ceder ao pragmatismo dos príncipes
protestantes da Liga de Smalkalde (1531-1547), quando então ratificou o
princípio “cujus regio, ejus religio”, Lutero afirmava que era Deus que deveria
julgar a fé individual e, portanto, nenhuma autoridade política deveria, em
nome dela, causar perdas de vida e de bens entre seus súditos.
Por fim,
valeria fazer uma última indagação: Se a ação de Lutero de lançar as suas teses
em 1517 não teria nada de excepcional, por que posteriormente isso foi
celebrado em muitos livros didáticos de história com uma certa conotação de
heroicidade ou excepcionalidade?
Em primeiro
lugar, porque os desdobramentos não necessariamente luteranos de uma fé
reformada ganharam avultado corpo e agentes sociais nas décadas que se seguiram
a Lutero. Sem isso, não há quem celebre ou crie memória social em torno de
determinado evento como “marco fundador”. Em todo caso, foi ao final do século
XVII, contexto da expansão militar de Luís XIV (que revogou o Édito de Nantes
em 1685) na Europa Central, que se começou a celebrar nos meios protestantes o
“dia de lançamento das 95 Teses de Lutero” como um marco histórico de ruptura
com Roma.
Em segundo
lugar, desde meados do século XVIII, várias idéias de outros escritos de Lutero
foram lidos numa chave interpretativa iluminista de progresso cultural,
particularmente as implicações sociais e institucionais de sua percepção de que
a fé ou a consciência religiosa não deveria ser matéria dos príncipes. Aliás,
vale lembrar que Immanuel Kant (1724-1804) está inscrito na tradição luterana
quando escreve o artigo “O que é Esclarecimento?”(1784), no qual define um nexo
causal entre secularização, tolerância religiosa e progresso cultural.
Em terceiro
lugar, é bastante significativo lembrarmos que, no último terço do século XIX,
políticos e intelectuais – bem antes da sociologia de Max Weber – começaram a
estabelecer um nexo causal entre “protestantismo”, “progresso capitalista” e
“expansão colonial moderna”, de modo a explicar e justificar a emergência imperial
da Grã-Bretanha e da Prússia em face à “decadência ibérica” e à “derrocada
napoleônica”.
Cronologia:
1483: 10 de
novembro: Nasce Lutero.
1509:
Henrique VIII(1491-1547) torna-se rei da Inglaterra. Nasce João Calvino em 10
de julho.
1517, 31 de
outubro: Lutero fixa as suas “95 Teses” na porta da Igreja do Castelo de
Wittenberg.
1518: Lutero
recusa-se a retratar-se perante o papa Leão X(1475-1521; pontificado:
1513-1521).
1520, junho:
Leão X condena 41 proposições de Lutero.
1521, 21 de
janeiro: Leão X excomunga Lutero, mas levam vários meses até a ordem de
excomunhão chegar à Alemanha.
1522: Lutero
publica a sua advertência contra os distúrbios e publica a tradução do grego
para o alemão do Novo Testamento, com gravuras de Lucas Cranach (1472-1553).
1523: Lutero
publica texto que fala do direito de a comunidade de fiéis julgar toda a
doutrina e nomear e demitir clérigos.
1524-1525:
Revolta camponesa liderada por Thomas Müntzer (1490-1525).
1525: Lutero
publica texto contra os “profetas sagrados” e contra as “revoltas camponesas”.
1528:
Mandato imperial ameaça de morte os anabatistas.
1530: Carlos
V (1500-1558) – rei de Espanha desde 1516 e eleito imperador Habsburgo desde
1519 – fracassa em impor uma ortodoxia religiosa ao império.
1534:
Ruptura de Henrique VIII da Inglaterra com Roma, supressão dos monastérios e
concessão de permissão para os padres se casarem. Na Alemanha, Lutero publica a
tradução do hebreu para o alemão do Velho Testamento.
1534-1535:
Anabatistas tomam o poder em Münster, mas seu “reino” é derrubado pela
coligação de forças católicas e protestantes.
1536: Surge
a primeira edição de “Instituições da Religião Cristã”, de João Calvino. Ocorre
também a introdução da bíblia vernacular na Inglaterra.
1542:
Calvino organiza o seu catecismo em Genebra.
1544:
Calvino admoesta os anabatistas.
1545, 13 de
dezembro: Começa o Concílio de Trento.
1546, 18 de
fevereiro: Morre Lutero.
1547:
Eduardo VI(1537-1553) assume o trono na Inglaterra e demonstra forte tendência
calvinista.
1549:
Eduardo VI lança o livro de pregações e pretende forçar a uniformidade
religiosa em torno da fé reformada na Inglaterra.
1553: Morre
Eduardo VI e sua irmã mais velha, Maria I(1516-1558), pretende o retorno da
Inglaterra ao Catolicismo.
1558: Morre
Carlos V da Espanha e Maria I da Inglaterra. Elizabeth (1533-1603) assume o
trono da Inglaterra e tenta restaurar o anglicanismo de seu pai, Henrique VIII,
o que significava evitar os extremos puritano(Eduardo VI) e católico(Maria I).
1560, Março:
Fracasso de uma conspiração de jovens aristocratas huguenotes contra a Casa
Católica do Duque de Guise na França. Primeiro édito de tolerância é editado.
1561,
Setembro-Novembro: Colóquio de Poissy, mas fracassa a tentativa de restaurar a
unidade entre huguenotes e católicos na França.
1562, março:
Massacre dos huguenotes em Vassy comandada pela Casa Católica de Guise.
Primeira Guerra Civil Religiosa na França.
1563: Em
março, Catarina de Médicis(1519-1589; regente: 1560-1574) tenta por fim à
guerra civil francesa com a assinatura da Paz de Amboise, que concede certo
grau de tolerância para os huguenotes. Neste mesmo ano, encerra-se o Concílio
de Trento.
1564, 27 de
maio: Morre João Calvino. Théodore de Béze (1519-1605) sucede Calvino como
líder da reforma protestante centrada em Genebra.
1572, 23-24
de agosto: Noite do Massacre de São Bartolomeu em Paris.
1598:
Publicação do Édito de Nantes.
1685:
Revogação do Édito de Nantes.
As 95 Teses
de Martinho Lutero
Com um
desejo ardente de trazer a verdade à luz, as seguintes teses serão defendidas
em Wittenberg sob a presidência do Rev. Frei Martinho Lutero, Mestre de Artes,
Mestre de Sagrada Teologia e Professor oficial da mesma. Ele, portanto, pede
que todos os que não puderem estar presentes e disputar com ele verbalmente,
façam-no por escrito.
Em nome de
Nosso Senhor Jesus Cristo.
Amém.
1. Ao dizer:
“Fazei penitência”, etc. [Mt 4.17], o nosso Senhor e Mestre Jesus Cristo quis
que toda a vida dos fiéis fosse penitência.
2. Esta
penitência não pode ser entendida como penitência sacramental (isto é, da
confissão e satisfação celebrada pelo ministério dos sacerdotes).
3. No
entanto, ela não se refere apenas a uma penitência interior; sim, a penitência
interior seria nula se, externamente, não produzisse toda sorte de mortificação
da carne.
4. Por
conseqüência, a pena perdura enquanto persiste o ódio de si mesmo (isto é a
verdadeira penitência interior), ou seja, até a entrada do reino dos céus.
5. O papa
não quer nem pode dispensar de quaisquer penas senão daquelas que impôs por
decisão própria ou dos cânones.
6. O papa
não tem o poder de perdoar culpa a não ser declarando ou confirmando que ela
foi perdoada por Deus; ou, certamente, perdoados os casos que lhe são
reservados. Se ele deixasse de observar essas limitações, a culpa permaneceria.
7. Deus não
perdoa a culpa de qualquer pessoa sem, ao mesmo tempo, sujeitá-la, em tudo
humilhada, ao sacerdote, seu vigário.
8. Os
cânones penitenciais são impostos apenas aos vivos; segundo os mesmos cânones,
nada deve ser imposto aos moribundos.
9. Por isso,
o Espírito Santo nos beneficia através do papa quando este, em seus decretos,
sempre exclui a circunstância da morte e da necessidade.
10. Agem mal
e sem conhecimento de causa aqueles sacerdotes que reservam aos moribundos
penitências canônicas para o purgatório.
11. Essa
cizânia de transformar a pena canônica em pena do purgatório parece ter sido
semeada enquanto os bispos certamente dormiam.
12.
Antigamente se impunham as penas canônicas não depois, mas antes da absolvição,
como verificação da verdadeira contrição.
13. Através
da morte, os moribundos pagam tudo e já estão mortos para as leis canônicas,
tendo, por direito, isenção das mesmas.
14. Saúde ou
amor imperfeito no moribundo necessariamente traz consigo grande temor, e tanto
mais quanto menor for o amor.
15. Este
temor e horror por si sós já bastam (para não falar de outras coisas) para
produzir a pena do purgatório, uma vez que estão próximos do horror do
desespero.
16. Inferno,
purgatório e céu parecem diferir da mesma forma que o desespero, o semi
desespero e a segurança.
17. Parece
necessário, para as almas no purgatório, que o horror devesse diminuir à medida
que o amor crescesse.
18. Parece
não ter sido provado, nem por meio de argumentos racionais nem da Escritura,
que elas se encontrem fora do estado de mérito ou de crescimento no amor.
19. Também
parece não ter sido provado que as almas no purgatório estejam certas de sua
bem-aventurança, ao menos não todas, mesmo que nós, de nossa parte, tenhamos
plena certeza disso.
20.
Portanto, por remissão plena de todas as penas, o papa não entende simplesmente
todas, mas somente aquelas que ele mesmo impôs.
21. Erram,
portanto, os pregadores de indulgências que afirmam que a pessoa é absolvida de
toda pena e salva pelas indulgências do papa.
22. Com
efeito, ele não dispensa as almas no purgatório de uma única pena que, segundo
os cânones, elas deveriam ter pago nesta vida.
23. Se é que
se pode dar algum perdão de todas as penas a alguém, ele, certamente, só é dado
aos mais perfeitos, isto é, pouquíssimos.
24. Por
isso, a maior parte do povo está sendo necessariamente ludibriada por essa
magnífica e indistinta promessa de absolvição da pena.
25. O mesmo
poder que o papa tem sobre o purgatório de modo geral, qualquer bispo e cura
tem em sua diocese e paróquia em particular.
26. O papa
faz muito bem ao dar remissão às almas não pelo poder das chaves (que ele não
tem), mas por meio de intercessão.
27. Pregam
doutrina mundana os que dizem que, tão logo tilintar a moeda lançada na caixa,
a alma sairá voando [do purgatório para o céu].
28. Certo é
que, ao tilintar a moeda na caixa, pode aumentar o lucro e a cobiça; a
intercessão da Igreja, porém, depende apenas da vontade de Deus.
29. E quem é
que sabe se todas as almas no purgatório querem ser resgatadas, como na
história contada a respeito de São Severino e São Pascoal?
30. Ninguém
tem certeza da veracidade de sua contrição, muito menos de haver conseguido
plena remissão.
31. Tão raro
como quem é penitente de verdade é quem adquire autenticamente as indulgências,
ou seja, é raríssimo.
32. Serão
condenados em eternidade, juntamente com seus mestres, aqueles que se julgam
seguros de sua salvação através de carta de indulgência.
33. Deve-se
ter muita cautela com aqueles que dizem serem as indulgências do papa aquela
inestimável dádiva de Deus através da qual a pessoa é reconciliada com Ele.
34. Pois
aquelas graças das indulgências se referem somente às penas de satisfação
sacramental, determinadas por seres humanos.
35. Os que
ensinam que a contrição não é necessária para obter redenção ou indulgência,
estão pregando doutrinas incompatíveis com o cristão.
36. Qualquer
cristão que está verdadeiramente contrito tem remissão plena tanto da pena como
da culpa, que são suas dívidas, mesmo sem uma carta de indulgência.
37. Qualquer
cristão verdadeiro, vivo ou morto, participa de todos os benefícios de Cristo e
da Igreja, que são dons de Deus, mesmo sem carta de indulgência.
38. Contudo,
o perdão distribuído pelo papa não deve ser desprezado, pois – como disse – é
uma declaração da remissão divina.
39. Até
mesmo para os mais doutos teólogos é dificílimo exaltar simultaneamente perante
o povo a liberalidade de indulgências e a verdadeira contrição.
40. A
verdadeira contrição procura e ama as penas, ao passo que a abundância das
indulgências as afrouxa e faz odiá-las, ou pelo menos dá ocasião para tanto.
41. Deve-se
pregar com muita cautela sobre as indulgências apostólicas, para que o povo não
as julgue erroneamente como preferíveis às demais boas obras do amor.
42. Deve-se
ensinar aos cristãos que não é pensamento do papa que a compra de indulgências
possa, de alguma forma, ser comparada com as obras de misericórdia.
43. Deve-se
ensinar aos cristãos que, dando ao pobre ou emprestando ao necessitado,
procedem melhor do que se comprassem indulgências.
44. Ocorre
que através da obra de amor cresce o amor e a pessoa se torna melhor, ao passo
que com as indulgências ela não se torna melhor, mas apenas mais livre da pena.
45. Deve-se
ensinar aos cristãos que quem vê um carente e o negligencia para gastar com
indulgências obtém para si não as indulgências do papa, mas a ira de Deus.
46. Deve-se
ensinar aos cristãos que, se não tiverem bens em abundância, devem conservar o
que é necessário para sua casa e de forma alguma desperdiçar dinheiro com
indulgência.
47. Deve-se
ensinar aos cristãos que a compra de indulgências é livre e não constitui
obrigação.
48. Deve
ensinar-se aos cristãos que, ao conceder perdões, o papa tem mais desejo (assim
como tem mais necessidade) de oração devota em seu favor do que do dinheiro que
se está pronto a pagar.
49. Deve-se
ensinar aos cristãos que as indulgências do papa são úteis se não depositam sua
confiança nelas, porém, extremamente prejudiciais se perdem o temor de Deus por
causa delas.
50. Deve-se
ensinar aos cristãos que, se o papa soubesse das exações dos pregadores de
indulgências, preferiria reduzir a cinzas a Basílica de S. Pedro a edificá-la
com a pele, a carne e os ossos de suas ovelhas.
51. Deve-se
ensinar aos cristãos que o papa estaria disposto – como é seu dever – a dar do
seu dinheiro àqueles muitos de quem alguns pregadores de indulgências extorquem
ardilosamente o dinheiro, mesmo que para isto fosse necessário vender a
Basílica de S. Pedro.
52. Vã é a
confiança na salvação por meio de cartas de indulgências, mesmo que o
comissário ou até mesmo o próprio papa desse sua alma como garantia pelas
mesmas.
53. São
inimigos de Cristo e do Papa aqueles que, por causa da pregação de
indulgências, fazem calar por inteiro a palavra de Deus nas demais igrejas.
54.
Ofende-se a palavra de Deus quando, em um mesmo sermão, se dedica tanto ou mais
tempo às indulgências do que a ela.
55. A
atitude do Papa necessariamente é: se as indulgências (que são o menos
importante) são celebradas com um toque de sino, uma procissão e uma cerimônia,
o Evangelho (que é o mais importante) deve ser anunciado com uma centena de
sinos, procissões e cerimônias.
56. Os
tesouros da Igreja, a partir dos quais o papa concede as indulgências, não são
suficientemente mencionados nem conhecidos entre o povo de Cristo.
57. É
evidente que eles, certamente, não são de natureza temporal, visto que muitos
pregadores não os distribuem tão facilmente, mas apenas os ajuntam.
58. Eles
tampouco são os méritos de Cristo e dos santos, pois estes sempre operam, sem o
papa, a graça do ser humano interior e a cruz, a morte e o inferno do ser
humano exterior.
59. S.
Lourenço disse que os pobres da Igreja são os tesouros da mesma, empregando, no
entanto, a palavra como era usada em sua época.
60. É sem
temeridade que dizemos que as chaves da Igreja, que foram proporcionadas pelo
mérito de Cristo, constituem estes tesouros.
61. Pois
está claro que, para a remissão das penas e dos casos especiais, o poder do
papa por si só é suficiente.
62. O
verdadeiro tesouro da Igreja é o santíssimo Evangelho da glória e da graça de
Deus.
63. Mas este
tesouro é certamente o mais odiado, pois faz com que os primeiros sejam os
últimos.
64. Em
contrapartida, o tesouro das indulgências é certamente o mais benquisto, pois
faz dos últimos os primeiros.
65. Portanto,
os tesouros do Evangelho são as redes com que outrora se pescavam homens
possuidores de riquezas.
66. Os
tesouros das indulgências, por sua vez, são as redes com que hoje se pesca a
riqueza dos homens.
67. As
indulgências apregoadas pelos seus vendedores como as maiores graças realmente
podem ser entendidas como tais, na medida em que dão boa renda.
68.
Entretanto, na verdade, elas são as graças mais ínfimas em comparação com a
graça de Deus e a piedade da cruz.
69. Os
bispos e curas têm a obrigação de admitir com toda a reverência os comissários
de indulgências apostólicas.
70. Têm,
porém, a obrigação ainda maior de observar com os dois olhos e atentar com
ambos os ouvidos para que esses comissários não preguem os seus próprios sonhos
em lugar do que lhes foi incumbidos pelo papa.
71. Seja
excomungado e amaldiçoado quem falar contra a verdade das indulgências
apostólicas.
72. Seja
bendito, porém, quem ficar alerta contra a devassidão e licenciosidade das
palavras de um pregador de indulgências.
73. Assim
como o papa, com razão, fulmina aqueles que, de qualquer forma, procuram
defraudar o comércio de indulgências,
74. muito
mais deseja fulminar aqueles que, a pretexto das indulgências, procuram fraudar
a santa caridade e verdade.
75. A
opinião de que as indulgências papais são tão eficazes a ponto de poderem
absolver um homem mesmo que tivesse violentado a mãe de Deus, caso isso fosse
possível, é loucura.
76.
Afirmamos, pelo contrário, que as indulgências papais não podem anular sequer o
menor dos pecados venais no que se refere à sua culpa.
77. A
afirmação de que nem mesmo São Pedro, caso fosse o papa atualmente, poderia
conceder maiores graças é blasfêmia contra São Pedro e o Papa.
78. Dizemos
contra isto que qualquer papa, mesmo São Pedro, tem maiores graças que essas, a
saber, o Evangelho, as virtudes, as graças da administração (ou da cura), etc.,
como está escrito em I.Coríntios XII.
79. É
blasfêmia dizer que a cruz com as armas do papa, insigneamente erguida,
eqüivale à cruz de Cristo.
80. Terão
que prestar contas os bispos, curas e teólogos que permitem que semelhantes
sermões sejam difundidos entre o povo.
81. Essa
licenciosa pregação de indulgências faz com que não seja fácil nem para os
homens doutos defender a dignidade do papa contra calúnias ou questões, sem
dúvida argutas, dos leigos.
82. Por
exemplo: Por que o papa não esvazia o purgatório por causa do santíssimo amor e
da extrema necessidade das almas – o que seria a mais justa de todas as causas
–, se redime um número infinito de almas por causa do funestíssimo dinheiro
para a construção da basílica – que é uma causa tão insignificante?
83. Do mesmo
modo: Por que se mantêm as exéquias e os aniversários dos falecidos e por que
ele não restitui ou permite que se recebam de volta as doações efetuadas em
favor deles, visto que já não é justo orar pelos redimidos?
84. Do mesmo
modo: Que nova piedade de Deus e do papa é essa que, por causa do dinheiro,
permite ao ímpio e inimigo redimir uma alma piedosa e amiga de Deus, mas não a
redime por causa da necessidade da mesma alma piedosa e dileta por amor
gratuito?
85. Do mesmo
modo: Por que os cânones penitenciais – de fato e por desuso já há muito
revogados e mortos – ainda assim são redimidos com dinheiro, pela concessão de
indulgências, como se ainda estivessem em pleno vigor?
86. Do mesmo
modo: Por que o papa, cuja fortuna hoje é maior do que a dos ricos mais
crassos, não constrói com seu próprio dinheiro ao menos esta uma basílica de
São Pedro, ao invés de fazê-lo com o dinheiro dos pobres fiéis?
87. Do mesmo
modo: O que é que o papa perdoa e concede àqueles que, pela contrição perfeita,
têm direito à plena remissão e participação?
88. Do mesmo
modo: Que benefício maior se poderia proporcionar à Igreja do que se o papa,
assim como agora o faz uma vez, da mesma forma concedesse essas remissões e
participações cem vezes ao dia a qualquer dos fiéis?
89. Já que,
com as indulgências, o papa procura mais a salvação das almas do que o
dinheiro, por que suspende as cartas e indulgências, outrora já concedidas, se
são igualmente eficazes?
90. Reprimir
esses argumentos muito perspicazes dos leigos somente pela força, sem
refutá-los apresentando razões, significa expor a Igreja e o papa à zombaria
dos inimigos e fazer os cristãos infelizes.
91. Se,
portanto, as indulgências fossem pregadas em conformidade com o espírito e a
opinião do papa, todas essas objeções poderiam ser facilmente respondidas e nem
mesmo teriam surgido.
92.
Portanto, fora com todos esses profetas que dizem ao povo de Cristo “Paz, paz!”
sem que haja paz!
93. Que
prosperem todos os profetas que dizem ao povo de Cristo “Cruz! Cruz!” sem que
haja cruz!
94. Devem-se
exortar os cristãos a que se esforcem por seguir a Cristo, seu cabeça, através
das penas, da morte e do inferno.
95. E que
confiem entrar no céu antes passando por muitas tribulações do que por meio da
confiança da paz.
em: 1517
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